domingo, 10 de fevereiro de 2008

O Dia D

Na época ninguém deu muita atenção aquele dia de testes em Donington Park, após o GP da Inglaterra de 1983. Era só um teste presenciado por uma dúzia de pessoas. Mas nascia ali uma lembrança muito acalentada por todos que estavam no autódromo. Por sorte, as câmeras registraram tudo em detalhes – o dia em que Ayrton Senna pilotou pela primeira vez um Fórmula 1. Dezenove de Julho de 1983, terça-feira ensolarada em Donington Park, na Inglaterra, um circuito construído dentro dos padrões da F1, mas que nunca abrigara uma corrida dessa categoria. A mera idéia de realizar um teste em Donington Park parece hoje implausível, mas foi o que um jovem piloto brasileiro chamado Ayrton Senna conseguiu, depois de ter chegado em primeiro na corrida de F-3 que abrira o GP da Inglaterra, dias antes. No seu melhor estilo, ele tinha feito também a pole e a volta mais rápida.
Hoje uma vitória de cabo a rabo – sendo essa a décima corrida ganha, das 13 disputadas até então na F-3 – teria valido imediatamente uma vaga na F1. Mas naqueles dias só deu para uma seção de testes por conta própria com o time campeão, a Williams. Na F1 atual, o jovem Senna teria seu nome num contrato com a Williams antes mesmo de sentar no carro. Em 1983, porém, a competição por jovens pilotos não chegava a ser exatamente intensa. A idade média do grid em 1983 era de 30 anos. Em 2003 é de 28.
A despeito de Senna ser uma óbvia estrela do futuro, o teste atraiu pouco interesse. Frank Williams compareceu, mas não fazia idéia da significação do evento. Só mais tarde ficariam patentes as ironias daquele dia. Senna teria um Williams como seu primeiro e último F1, com 11 anos de intervalo. O surpreendente é que pouca gente se lembra de grande coisa daquele dia, além de que Senna levou a Williams por Donington mais rápido do que ninguém antes dele. Aquela sessão de testes, aliás, poderia nunca ter acontecido, não tivesse o jovem Senna se sentado ao lado de Frank Williams num vôo para Zandvoort, onde o piloto correria de F-Ford 2000 na prova de abertura do GP da Holanda. Peter Collins, na época o chefe de equipe da Williams, lembra-se claramente. “Quando Frank chegou ao circuito disse: ‘ Sentei-me ao lado de um jovem piloto brasileiro, Ayrton Senna da Silva. Você o conhece? ’. Eu disse: ‘Sim, conheço. Ele vai correr aqui.” Senna ganhou a corrida naquele fim de semana e foi em frente, até faturar o campeonato, vencendo seis das nove etapas, além de oito poles.
Frank Williams lembra que “Ayrton era um jovem ambicioso e determinado, sempre ligando para pedir: ‘Vamos lá, me déia fazer um teste’. Ele havia ganhado quase todas as corridas da F-3 em 1983 e estava claro que provavelmente teria uma bela carreira pela frente, se bem que ninguém nunca sabe de fato essas coisas. Patrick Head e eu discutimos o assunto e eu decidi testar o Senna. Mesmo que não pudéssemos usá-lo em 1984, por conta de contratos que cobriam aquele ano, seria interessante ajudá-lo profissionalmente. Ele poderia lembrar disto mais tarde. Eis por que lhe demos o teste. O Ayrton era um jovem que causava grande impressão, e eu estava curioso em saber o que ele faria com uma máquina de 500 cavalos de potência. Senna era obstinado, o que já se via pela feroz insistência com que ele perseguia a mim e ao Patrick por causa do teste. Ele sabia o que queria, a quem recorrer e como conseguir as coisas”. Frank Williams, mesmo relutante, acabou concordando com o teste, e a data foi marcada para logo depois do GP da Inglaterra.
Senna chegou cedo á pista. Veio em seu Alfa Romeo cinza junto com o jornalista Reginaldo Leme, da TV Globo, que cobria a F1 desde 1972 e tinha sido igualmente amigo de Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet no início de suas carreiras. Aquele era um circuito que Senna conhecia bem. Donington, porém, não era uma das pistas favoritas das equipes de F1 para testes. Williams a tinha usado para testar outro jovem piloto, Jonathan Palmer, algumas semanas antes. Palmer não era um qualquer: sagrara-se campeão de F-3 e, em seguida, da F-2 Européia, na categoria principal de 2000 cm – um degrau abaixo da F1, na hierarquia do automobilismo da época. O tempo de Palmer foi usado como referencia para avaliar o desempenho de Senna. O brasileiro sabia que se não alcançasse o tempo do inglês não haveria futuro na F-1 para ele. Mas achava que isso não seria problema. E não foi.
A pista de Donington Park, no inicio dos anos 80, era feita pelos carros de F1 em um pouco mais de um minuto. Na época os times ainda não tinham estrutura especial para testes, e Senna sentou no FW08C, chassi numero 9, de Keke Rosberg, com o numero 1 de campeão do mundo pintado no nariz. Era o mesmo carro que Rosberg guiara em Silverstone, chegando fora da zona de pontuação, na 11º colocação.
Frank Williams se atrasou, pois seu Jaguar quebrara na rodovia. Chegando ao autódromo, conferenciou por meia hora com Senna, antes de o piloto entrar no carro. Reginaldo Leme é quem conta: “Lembro do Frank sorridente conversando com o Senna sobre um monte de coisas”. Keith Sutton também estava lá fotografando o teste. Na época ele, que hoje é dono de uma agência de fotos de automobilismo, era o relações-públicas de Senna e ganhava 100 libras (165 dólares) por mês para promover sua carreira. “Eu costumava mandar boletins de imprensa para os donos de equipes,” diz Sutton. Ele recorda como tudo começou. “Senna ligou dizendo que ia ser um teste secreto: ‘Você tem que ir lá fotografar, pra gente poder divulgar o evento’.” Ironia não faltava ao jovem brasileiro.
O irmão de Senna, Leonardo, e seu amigo íntimo, Álvaro Teixeira, também presenciaram o teste. Senna estava visivelmente nervoso. Era um momento carregado de emoção para ele, Depois de vestir o macacão, deu uma volta ao redor do carro e disse em português: “Chegou o dia” – o dia dos sonhos. Reginaldo Leme lembra que Senna deu dois soquinhos no carro, antes de entrar nele. Os mecânicos o ajudaram a prender o cinto de segurança. Tinham deixado uma mensagem no volante: “Cuidado, motorista novato.” “Olhei de movo e vi que Senna chorava”, afirma Reginaldo Leme. “Perguntei o que estava errado. Ele disse que apenas rezava”. O jornalista gravou o teste para a Globo, a ser exibido no Brasil, onde já havia grande interesse pela carreira de Senna. “A gente torcia por um teste bem-sucedido”. Não ficariam desapontados. Senna fez uma primeira volta impressionante, melhorando sua marca na segunda, e depois na terceira, quarta, quinta volta. A cada giro ia mais rápido. O tempo de Palmer logo estaria a seu alcance. Palmer dera sua melhor volta em 61,7 segundos. Nove voltas depois, Senna igualaria essa marca. No total deu 20 voltas naquele dia, estabelecendo um novo recorde da equipe Williams em Donington Park: 60,1 segundos.
O próprio Senna pediu para encerrar o teste quando já estava a ponto de ser o primeiro homem a virar Donington em menos de um minuto. “Ele parou depois de cravar 60,1 segundos, dizendo: ‘ Acho que esse motor vai estourar. Melhor não continuar’. Dissemos a ele: ‘Tem certeza?’ E ele respondeu: ‘Tenho. Para mim esta ótimo muito obrigado”, lembra Frank Williams. “Senna deu bem poucas voltas – umas 20 – e foi desde logo muito rápido. Via-se que dirigir um carro de F1 estava inteiramente dentro de suas possibilidades. Jonathan tinha feito um monte de testes ali e tinha ficado em torno de 61,5 segundos, tempo que, acho eu, Senna já tinha igualado ali pelo oitavo giro. No final, cravou 60,1 segundos, mesmo comprimido dentro do carro do Keke, pois Ayrton era alto e magro, ao contrario do Keke, que era corpulento e baixo. Fiquei realmente impressionado”.
Os mecânicos ficaram surpresos que ele tivesse batido Palmer por 1,6 segundos. Alan Challis, então chefe dos mecânicos, recorda-se: “Era só deixar Senna se familiarizar com o cockpit, dando-lhe o tempo necessário, como faríamos com qualquer piloto de F-3. O que me espantou foi o quanto conseguiu andar rápido logo de cara – incrivelmente regular, confiante e rápido. Ele voltou ao box e nós lhe dissemos para tirar um pouco o pé. Ele disse que nem estava pisando fundo”.
O mecânico de provas Charlie Moody estava encarregado de preparar o FW08C, junto com seu numero 2, Robbie Campbell, que conhecia bem Senna por já ter trabalhado antes com outro brasileiro, Emerson Fittipaldi. “Já tínhamos visto o Ayrton correr na F-Ford 2000, claro”, diz Campbell. “Eu costumava brincar dizendo a Senna que ele tinha um motorzão naquele carro, o que, com certeza, não era o caso. Ele simplesmente era rápido. Naquele dia, Senna foi mais veloz em Donington do que ninguém antes dele pilotando um Williams. E ele nem estava dando tudo, incomodado no carro ajustado para o Keke. Ele estava espremido no comprimento e folgado nas laterais do cockpit, pois o Keke era mais corpulento.” Segundo Campbell,” Senna deu algumas voltas, voltou para o box e me disse: ‘Quantas marchas tem esse carro?’ Seis eu respondi. ‘Ok’, disse ele. ‘Só usei cinco até agora’”.
Sutton se lembra da velocidade de Senna na chicane: “Ele era incrível nas freadas, retardava ao máximo, usava toda a pista e tocou na zebra poucas vezes. Parecia que tinha feito aquilo a vida inteira”. Steven Tee, outro fotógrafo presente ao teste recorda: “Eles não acreditavam na velocidade do Senna. Acho que chegaram a fazer umas coisinhas para segurá-lo um pouco, pois achavam que ele estava indo rápido demais. Enchiam o tanque do carro em cada parada, para ficar mais pesado, essas coisas. Acho que também mexeram algumas vezes na geometria da suspensão e nas asas, sem contar a ele. Nada grave, só uma coisinha ou outra, para ver se ele percebia. Para testá-lo. Ele percebeu e apontou cada coisa.”
A equipe inteira estava impressionada, como Peter Collins descobriu quando todos voltaram para a fábrica e lhe deram as noticias do teste. Collins ainda se lembra de Alan Challis balbuciando: “O cara é incrível. Parecia a primeira vez que a gente testou o Jackie Stewart na BRM”. Collins e Challis disseram a Frank Williams que ele deveria colocar o Senna num carro e deixá-lo correr. Porém isso não aconteceria.
Frank Williams ficou satisfeito com o teste, mas não o bastante para mover montanhas e dar a Senna um lugar ao volante. Ele explica: “Não estávamos procurando um piloto para o próximo ano. Tínhamos Laffite e Rosberg e estávamos bem assim. Keke já era campeão mundial e estava em sua terceira ou quarta temporada, trunfos que Senna não tinha. Ambos tinham uma habilidade fenomenal, mas Senna ainda não tinha desabrochado plenamente. Não tinha descoberto ainda seus limites. Não há mistério nenhum nisso. Apenas constatamos as evidências e fizemos uma escolha. Não há um raio de luz sobre um determinado piloto. Ás vezes você tem de seguir seus próprios palpites”.
Surpreendentemente, Frank Williams não contratou Senna, e o novo Jackie Stewart escorreu entre seus dedos. Meses depois, Senna faria outro teste, dessa vez na McLaren, que também o deixou escapar. Após o teste com a Williams, Senna voltou á F-3 e abocanhou a vitória em 13 das 20 corridas da temporada, fazendo 15 poles e 12 voltas mais rápidas, além de chegar em primeiro com ampla folga, na prova de Macau.
As fotos que Keith Sutton fez do teste são hoje relíquias queridas. “Ele estava sensacional, e impressionou um monte de gente. Nunca entendi por que Frank Williams não fechou com ele na hora. Acho que ele se arrepende até hoje disso, e provavelmente foi essa razão que o levou a assinar com Jenson Button antes que alguém lançasse mão do garoto. Foi um grande privilégio para mim estar lá naquele dia para ver Senna num carro de F-1 pela primeira vez na vida dele.”

Texto tirado da:Revista 4 Rodas 1993

Segue-se uma imagem dele testando a williams

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